quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Como é o ator por dentro?



No post de hoje resolvi apresentar para vocês leitores o que é  a
 ARTE de ser um ATOR e para isso vou mostrar-lhes um texto de Chico de Assis, grande dramaturgo brasileiro responsável por obras teatrais e televisivas memoráveis. 

Se já teve vontade de ser um ator/atriz ou se pelo menos alguma vez na vida já pensou em   como é o sentir e o viver de um ator, esse é o momento perfeito para conhecer um pouco dessa profissão, na qual tenho a ousadia de dizer que é uma das mais encantadoras.


                                                               O Ator

"Então você tem curiosidade em saber como é o ator por dentro?

Eu digo. O dentro está por fora e o fora está por dentro. Entenderam?
Trato simples para um ator: jogar a vida de fora para dentro e depois devolver a mesma vida botando de dentro para fora. Entre uma coisa e outra, isso que chamamos de arte. Eu prefiro artimanha.

Mas quando o ator começa a achar o seu personagem, o mundo fica bem diverso. Tornar-se invisível.
Trocando em miúdos: SER NADA.
Porque no nada tudo cabe. Se você já está lotado de tantas emoções e ideias, dentro não cabe mais coisa alguma. É preciso abrir espaço no nosso eu para o que virá. Porque aquele personagem que virá não será nem maior nem menor que você. Terá seu exato tamanho. Fácil, não é? Alguém pode pensar que um ator veste uma personagem como veste um terno.
Não, não é assim. Isso não é arte de representar.

Temos que ir aos poucos, com cautela, vendo através da mente ainda nublada, os primeiros traços de sentimentos e gestos do personagem. Daí começa a surgir uma
linha mais forte e marcada, como uma espécie de foco que vamos buscando cada vez com maior nitidez. São formas que dançam à nossa frente, desordenadas, uma orgia de jeitos e facetas disparatadas.
Um que não nós, ficaria doido com o embrulho. Mas com este leite fomos criados, nós que somos atores.
É deste caos que vai nascer o personagem. Primeiro bruto e mal acabado como um catunguinha de barro daqueles do mestre Vitalino. Bruto, mal acabado, mas já muito belo. Depois as formas mais delicadas vão se desenhando suave e constantemente durante o processo. Tudo montadinho como um jogo vivo. Como pescar no rio da própria alma e encher o picuá de: detalhes de vida; relances de emoções; tratos de angustias, visões de sonhos. Rostos que vimos uma vez... Meia vez... Vez alguma. Apenas produto da invenção de um ser.

E assim vamos vestindo de vida este prodígio. Este ser noviço que nos tira a calma. Dorme conosco, acorda conosco, bebe e come conosco, e até ama e odeia juntinho com a gente: ah, ele ali relando a pele. É um trambolho desajustado que acaba por se acomodar com a gente. Atrevido, nos mostra o próprio rosto para que não tenhamos dúvidas que ele é ele e não nós.

Ah, que caminho de aventura, seres tu mesmo a outra criatura.
Ah, que loucura chorar e rir, por si mesmo e pelo estranho que lentamente tiraste da vida e do sonho, para a realidade da arte.
Juro! Só o ator. Isso só o ator pode sentir.

E chega o momento em que tudo fica como que pronto.
Ai não vives para ti mesmo e sim para ele. Acordas cedo e dormes tarde: para ele. Recebes aplausos, flores e cumprimentos; mas são tudo para ele. Você ator é apenas o humano intermediário. Quando te encontram na rua te chamam pelo nome dele e és obrigado a responder. E se és ator, eu te juro que é questão de tédio. As vezes a gente pergunta:
- Mas por que não separam o criador da criatura?

O chato é que às vezes até nós mesmos nos confundimos. Às vezes eu não sei se sou EU mesmo, ou os personagens que crio. Eu fico tão ligado à ele, que palavras minhas passam como as dele e as dele passam como minhas. E chega um tempo que não sei mais onde começa a mão dele e termina o meu próprio braço. E perco a noção. De qual coração são as batidas que sinto no meu peito? Do meu... Do dele, não sei.

Aí chega o tempo de quebrar o espelho. O personagem chega ao fim do seu tempo de vida. Começa a morrer e não podes morrer com ele. Tens de desfazer o já feito. Desimventar o ser e dividir o coração no peito. No começo é como aprender a andar e falar de novo; como se tivessem te cortado pela metade. Não sabes mais viver uma só vida.
Sua íntima essência de ator requer a duplicidade. Que monotonia de ser eu mesmo noite e dia! Então eu fico confuso. Conto histórias, invento mentiras, minto realidades, misturo tudo e jogo a vida no sonho e o sonho na vida.
Discuto futebol, vou às corridas de cavalos, converso com meus cães, bebo com os amigos. Mas fujo dos espelhos. Pelas noites fico rodeado de fantasmas de antigos personagens mortos que me assombram com lembranças.

Tantas vidas que viveram, tantas mais que viver. Então finjo que estou feliz. Engano que estou triste. Mas na verdade estou só incompleto. É isso, meia vida e meia morte.
Mas quando se é ator a vida segue de outro jeito. Cai na tua mão outro papel. Passas os olhos e alguma coisa te fisga, como um anzol. Tentas fugir arrastando a linha, mas é tarde. Estás novamente pescado. Então eu te digo que o primeiro passo é deixar de ser. Depois deixar bater baixinho dentro do teu peito o coração daquele personagem que lentamente se forma e te deforma.
- Vocês querem saber o que é preciso para ser ator?
Eu digo: São olhos que choram lágrimas duplas. Às vezes um olho que ri enquanto o outro chora. Olhos que olham ao mesmo tempo para fora e para dentro. É preciso a boca treinada para separar o sabor do gosto da lágrima criada, mas principalmente é preciso manter a alma ensolarada e ampla para ser um Deus dentro de si. Para poder jorrar para fora com luz, angústia e talento com toda a voz o comando:
FAÇA-SE O HOMEM!"

- Chico de Assis (Dedicado à Lima Duarte)

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